A lenda da Moreninha

Conforme publicado no livro A MORENINHA, de Joaquim Manuel de Macedo

“Era no tempo em que ainda os Portuguezes não haviam sido por uma tempestade empurrados para a terra de Santa Cruz: esta pequena ilha abundava de belas aves, e em derredor pescava-se excellente peixe.
Uma jovem Tamoya, cujo rosto moreno parecia tostado pelo fogo em que ardia-lhe o coração; uma jovem Tamoya linda e sensível, tinha por habitação esta rude gruta, onde ainda então não se via a fonte que hoje vemos.

Ora, ella que até aos quinze annos era innocente como a flor, e por isso alegre e folgazona como uma cabritinha nova, começou a fazer-se tímida , e depois triste como gemido da rola; – a causa estava no agradável parecer de um mancebo de sua tribo, que diariamente vinha caçar ou pescar na ilha; e vinte vezes já o havia feito sem que uma só desse fé dos olhares ardentes que lhe dardejava a moça.

O nome d’elle era Aoitin; o nome d’ella era Ahy.

A pobre Ahy, que sempre o seguia ora lhe apanhava as aves que elle matava, ora lhe buscava as flechas disparadas, e nunca um só signal de reconhecimento obtinham.

Quando no fim de seus trabalhos Aoitin ia adormecer na gruta, ella entrava de manso e com um ramo de palmeira procurava movendo o ar, refrescar a fronte do guerreiro.

Mas tantos extremos eram tão mal pagos, que Ahy, de cansada, procurou fugir do insensível moço e fazer por esquecel-o; porém, como era de esperar, nem fugiu e nem o esqueceu.

Desde então tomou outro partido: chorou…

Ou porque sua dor era tão grande que lhe podia espremer o amor em lágrimas desde o coração até os olhos, ou porque, selvagem mesma, ella já tinha compreendido que a grande arma da mulher está no pranto; Ahy chorou…

E porque também nas lágrimas de amor há, como na saudade, uma doce amargura, que é veneno que não mata por vir sempre temperado com o reactivo da esperança, que no pranto lhe addicionava a doçura, Ahy cantou…

Seu canto era triste e selvagem; mas terno canto. Dizem que um velho Frade Portuguez, ouvindo-o por tradicção ao depois de muitos annos, o traduziu para a nossa língua, e fez d’elle uma ballada, a qual minha neta canta.

Todos os dias ao romper d’aurora, a pobre Ahy subia ao rochedo que serve de tecto a esta gruta, e esperava a piroga de Aoitin. Mal a avistava de longe, chorava e cantava horas inteiras sem descanso, até que se partia o bárbaro, que nunca della dava fé, nem mesmo quando dormindo na gruta, o canto soava sobre a cabeça.

Mas Ahy era tão formosa, e sua voz tão sonora e terna, que o mesmo que não pôde vencer do insensível moço, pôde do bruto rochedo: com effeito, seu canto havia amollecido a rocha, e suas lágrimas a transpassaram.

E o mancebo vinha sempre, e sempre ella cantava e chorava, e nunca elle a attendia.

Uma vez, e já então o rochedo estava de todo transpassado pelas lágrimas da virgem selvagem… uma vez veio Aoitin, e como das outras não olhou, para Ahy, nem lhe escutou as sentidas cantigas: – Entregou-se a seus prazeres, e quando se sentiu fatigado, entrou na gruta e adormeceu num leito de verde relva. Mas ao tempo em que mais sossego dormia, duas gotas de lágrimas de amor, que tinham passado através do rochedo cahiram-lhe sobre as pálpebras que lhe cerravam os olhos.

Aoitin despertou, e tomando suas flechas, correu para o mar; mas saltando dentro de sua piroga, e afastando-se da ilha, ele viu sobre o rochedo a jovem Ahy, e disse bem alto:

– Linda moça!

No outro dia elle voltou, e já então olhou para a virgem selvagem; mas não ouviu o canto d’ella.

Depois de caçar veiu, como sempre, adormecer na gruta e d’essa vez a gota de lágrima lhe veiu cahir no ouvido; e na volta, não só admirou a belleza da jovem, como, ouvindo a terna cantiga, disse bem alto:

– Voz sonora!

Terceiro dia amanheceu, e Aoitin viu e ouviu Ahy, caçou e cansou; veio repousar na gruta e desta vez a gota de lágrima lhe cahiu no lugar do coração; e quando voltava, disse bem alto:

– Sinto amar-te!

Ora, parece que nada mais faltava a Ahy, e que a ella cumpria responder e este último grito de Aoitin, confessando também o seu amor tão antigo. Mas a natureza da mulher é a mesma, tanto na selvagem como na civilizada. A mulher deseja ser amada, fingindo não amar; deseja ser senhora do mesmo de que é escrava: e pois Ahy nada respondeu; mas riu-se, e suas lágrimas seccaram; porém já a esse tempo muitas que havia derramado tinham dado origem a esta fonte, que ainda hoje existe.

No dia seguinte veio Aoitin, e viu a sua amada que já não cantava, nem chorava: muito antes de abicar à praia, foi clamando:

– Sinto amar-te!

E Ahy não respondeu, e só sorriu-se.

Nada de caça… nada de pesca… já o insensível era escravo, e não vivia longe do encanto que o prendia: correu pois para a gruta, deitou-se; mas não dormiu. Quem ama não dorme; sentiu que em suas veias corria sangue ardente; que seu coração estava em fogo: – era a febre do amor… Aoitin teve sede; a dois passos viu a fonte que manava; correu açodado para ao pé d’ella, e ajuntando suas duas mãos foi bebendo lágrimas de amor. A cada trago que bebia, um raio de esperança lhe brilhava: quando a sede foi saciada, já estava feliz; a fonte era milagrosa.

As lágrimas de amor que haviam tido o poder de tornar amante o insensível mancebo, não puderam esconder a sua origem, e fizeram com que Aoitin conhecesse que era amado.

Então elle não mais buscou sua piroga: sahindo da gruta, fez um rodeio, e foi de manso trepando pelo rochedo, até chegar junto de Ahy, que com os olhos na praia do lado opposto, esperava ver partir o seu amante, e ouvir seu belo grito:

– Sinto amar-te!

Mas de repente ella estremeceu, porque uma mão estava sobre seu hombro: e quanto olhou, viu Aoitin, que sorrindo-se lhe disse, de um bom tom seguro e terno:

– Tu me amas.

Ahy não respondeu; mas também não fugiu dos braços de Aoitin, nem ficou devendo o beijo que nesse instante lhe estalou na face.

Desde então foram felizes ambos na vida, e foi n’uma mesma hora que morrerão ambos.

A fonte nunca mais deixou de existir, e há ainda quem acredite que por desconhecido encanto conserva suas virtudes: – Dizem pois que quem bebe d’essa água não sahe da nossa ilha sem amar alguém d’ella, e volta por força em demanda do objecto amado; e em segundo lugar, querem também alguns que algumas gotas bastam para quem bebe adivinhar os segredos de amor.”

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